Lords of Water – reflexões

A escassez de água no planeta para as atividades humanas (abastecimento, agricultura, indústria e atividades recreativas, por exemplo) é um dado adquirido e algumas projeções referem que em 2050, ou seja, daqui a 3 décadas, 25 % da população mundial viverá em países com problemas significativos de falta de água.

As causas para esta escassez são muitas, sendo algumas naturais e muitas outras antropogénicas. Especialmente para estas, é possível identificá-las e encontrar estratégias de mitigação ou mesmo resolução.

Contudo, o equilíbrio entre o que é o atual modelo de vida da sociedade humana e a necessidade de serem criadas as condições para que as gerações vindouras não maldigam os seus antepassados é muito difícil.

As estratégias de resolução ou mitigação das causas da escassez de água podem ser tecnológicas, comportamentais, sociais ou económico-financeiras. Aliás, desejavelmente deverão ser uma combinação de todas para que se obtenha o tal equilíbrio, que se quer perene.

O documentário Lords of Water, realizado por Jérome Fritel, apresenta-nos algumas destas estratégias, mas que não são aplicadas de forma combinada e, mais grave, são causa de conflito entre os diversos apoiantes.

Ora, esta pode ser uma das primeiras reflexões a retirar do visionamento deste documentário, isto é, é imperativo que as estratégias de mitigação ou resolução das causas de escassez de água sejam pensadas de forma integrada com todos os atores relevantes (comunidade científica, indústria, agricultura, entidades gestoras de abastecimento de água, governos, reguladores, consumidores/utilizadores, promotores de soluções tecnológicas, economistas, sociólogos).

É minha convicção que uma estratégia parcelar pecará sempre por defeito no objetivo a atingir e entendo que o documentário expõe essa falha.

Um bom exemplo é o binómio tarifa/eficiência. Com efeito, uma estratégia muito usada para induzir comportamentos de redução de consumos de água junto dos utilizadores é o incremento da tarifa apoiada na lógica de que “se é caro” o utilizador gastará menos.

É verdade que esta estratégia induz redução de consumos, mas também é verdade que esta redução poderá ser maximizada se for implementada em conjunto com estratégias de incremento de eficiência, quer do ponto de vista de quem produz a água, quer do ponto de vista de quem a utiliza.

De facto, a tarifa para o utilizador será muito mais justa se for calculada tendo por base critérios de eficiência para a entidade gestora que produz a água para o fim desejado, ou seja, o utilizador não pagará as ineficiências do seu prestador de serviço.

Por outro lado, a tarifa indutora de redução de consumos promoverá que o utilizador também incremente a sua eficiência de utilização da água utilizando as soluções tecnológicas ao seu dispor.

Desta forma, pode-se “fazer o mesmo com menos”. Para ilustrar de forma simples esta afirmação basta pensarmos que se utilizarmos um chuveiro mais eficiente na nossa higiene diária podemos tomar o mesmo duche, com a mesma duração que gostamos, mas utilizando menos água.

Este raciocínio leva-me a uma segunda reflexão que é a necessidade de introduzirmos rapidamente mecanismos indutores de utilização de equipamentos mais eficientes na utilização da água, à semelhança do que foi feito com a energia, por exemplo, com a classificação energética dos eletrodomésticos ou os certificados energéticos das habitações que passaram a ser obrigatórios na transação de um imóvel.

Não é a água um recurso mais essencial do que a energia para a manutenção da vida? Se a resposta é afirmativa, não deve ser o alegado valor económico do mercado energético que tem determinado a sua primazia relativamente ao setor da água. A essencialidade dos recursos hídricos e da utilização da água nas mais diversas atividades tem que ser per se promotora da introdução de instrumentos facilitadores de uma utilização mais eficiente, bem como de uma consciencialização conjunta da máxima importância da água e da sua disponibilidade.

Um outro exemplo de como soluções já existentes noutras áreas podem ser utilizadas no setor da água é o da pegada carbónica que a generalidade dos cidadãos conhece, que muitos utilizam, e bem, como argumento para a necessidade de mudança de comportamentos e paradigmas, que a União Europeia utiliza para forçar os construtores de motores a passarem da combustão aos motores elétricos ou a terem que cumprir critérios de emissões cada vez mais exigentes como são as normas Euro 5 atualmente em vigor.

Ora, por que razão não tem a pegada hídrica o mesmo papel da pegada carbónica? Era muito importante que o cidadão comum soubesse que um quilo de carne bovina precisa de cerca de 15 000 litros de água para chegar às nossas mesas, ou seja, a mesma quantidade de água necessária para uma família de quatro pessoas durante um mês. Era muito importante que o cidadão comum soubesse que um par de caças de ganga consome na sua produção cerca de
5 000 litros de água.

A disseminação generalizada desta informação (pegada hídrica) nos rótulos dos produtos que compramos poderá também constituir uma iniciativa relevante para a consciencialização de todos da importância da água e da necessidade imperativa de adotarmos comportamentos mais condizentes com o real valor deste recurso essencial. Esta é a minha terceira reflexão após o visionamento do documentário Lords of Water.

A propósito do “valor da água”, que é um assunto que tem merecido inúmeras reflexões, o documentário mostra de forma muito clara a abordagem de classificação da água como uma commodity feita na Austrália, nos Estados Unidos da América e em Inglaterra.

A definição simplificada de commodity é de um bem económico, um recurso, uma matéria-prima cujo preço é determinado pelas leis do mercado, ou seja, da oferta e da procura.

Em todo o documentário, é possível constatar que nos mercados financeiros não existe qualquer pudor em considerar a água como um bem económico, ao qual se pode atribuir um valor monetário variável em função das condições do mercado, sendo utilizados argumentos como a comparação da água com os diamantes enquanto produtos que a natureza nos “oferece” e, como tal, sujeitos igualmente à aplicação das teorias económicas mais variadas.

Na minha opinião, uma das frases marcantes deste documentário sobre a água enquanto commodity foi “Just because it’s life, it doesn’t mean it can’t be priced”. Foi também particularmente reveladora a afirmação de um operador do mercado da água na Austrália quando refere que a seca era sinónimo de um bom negócio.

Ora, pode a água ser tratada como uma vulgar commodity? Certamente que sim, mas penso que a resposta muda radicalmente se na pergunta substituirmos o verbo “poder” pelo “dever”, ou seja, deve a água ser uma vulgar commodity? Para a pergunta reformulada a minha resposta é não.

Há um facto inegável nos exemplos apresentados neste documentário, que é a incapacidade do modelo que transforma a água numa vulgar commodity para combater a escassez deste recurso, ou seja, em nenhum dos casos visionados foi possível evidenciar que esta estratégia estritamente economicista tenha de alguma forma contribuído para a melhoria das condições de vida.

De facto, esta estratégia não parece ser eficaz no combate à escassez de água, tornando-se aliás destrutiva para o tecido produtivo no setor agropecuário.

A água tem um caráter de essencialidade para a manutenção da vida e, como tal, tem que estar disponível para todos. Mas é importante distinguir a titularidade dos recursos hídricos da sua gestão. Quando se diz “privatizar a água” quer-se na verdade dizer “privatizar a gestão da água”, uma vez que a sua titularidade deve estar na esfera pública.

Assim, sou da opinião que a sua gestão pode ser privada ou pública mediante a existência de um quadro regulatório independente, mas a titularidade dos recursos hídricos não deve em caso algum sair da esfera de atuação pública para que seja garantida a universalidade de acesso a estes recursos de acordo com um conjunto de princípios bem definidos.

É também importante realçar que a universalidade de acesso à água, que está consagrada como um direito humano pelas Nações Unidas, bem como nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ao estabelecerem como meta que em 2030 toda a população humana deve ter acesso a água segura, não significa que a água seja gratuita.

Aliás, a necessidade de acabar com a gratuidade da água é outro argumento muito utilizado por todos os que veem este recurso como uma vulgar commodity quando na verdade a água nunca foi nem é gratuita. De facto, as fontes de financiamento é que podem ser diversas (diretas ou indiretas), seja por via das tarifas ou dos impostos, por exemplo.

Mas é preciso garantir que todo o ciclo urbano de utilização da água seja devidamente financiado e, ao mesmo tempo, que todos aqueles que comprovadamente não têm condições para pagar a sua fatura de água, têm à sua disposição os instrumentos necessários (tarifas sociais ou apoios diretos do Estado) que asseguram a água para todos.

Em resumo, é fundamental que se criem “ambientes regulatórios” capazes de equilibrar a balança que tem num dos pratos a universalidade de acesso à água e no outro a sustentabilidade económico-financeira das entidades que fazem a gestão dos recursos hídricos para que assim se atinja o desiderato desejado por todos que é garantia de acesso a água segura para todos.

Por fim, importa equacionar as interrogações que o documentário pode provocar para que sirvam de mote para a continuação da discussão e para a descoberta de soluções.

Neste sentido sugiro as seguintes perguntas:

  1. A quantidade de água no planeta é constante, ou seja, a Humanidade tem um “orçamento” fixo para um conjunto crescente de atividades e necessidades globais, quer pelo aumento populacional que estabilizará pelos 10-11 mil milhões de habitantes, quer pelo imperativo de gerir melhor as áreas produtivas. Não deveria ser equacionada a criação de um instrumento global (planetário) de gestão da água, eventualmente com ramificações regionais, para uma definição de regras genéricas de utilização do recurso água e verificação do seu cumprimento?
  • No processo de implementação de novas áreas produtivas, sejam elas dos setores primário, secundário ou terciário, a estratégia não deveria ser adaptação das atividades aos recursos hídricos existentes e não o contrário como muitas vezes parece acontecer?
  • Entendo que só quando o Homem incorporar nas suas estratégias de desenvolvimento uma visão transgeracional será possível implementar as medidas efetivamente necessárias para assegurar a perenidade dos recursos hídricos. Quais serão as iniciativas que poderão contribuir para que as próximas gerações adquiram esta visão transgeracional para que possamos ter planos estratégicos a 100 anos, por exemplo?

Saibamos discutir, refletir e responder a estas e outras questões para que a prospetiva de sobrevivência da Humanidade no planeta seja uma realidade positiva.  

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