A polémica racial do filme “Soul”

Não consigo deixar de ficar surpreendido com a facilidade que hoje se inventam “guerras” ou supostas causas para tornar os nossos dias aparentemente mais valiosos e as nossas ações com mais significado.

Apesar de todas as evoluções sociais, tecnológicas e económicas, o Homem continua como espécie a funcionar numa lógica tribal e com uma necessidade de constantemente erguer barreiras contra outros que vemos como inimigos e que, como tal, importa combater e eliminar.

É curioso que não são uns grunhos ou bárbaros que erguem todos estes muros e criam cisões na sociedade. Com efeito, esta postura é assumida por uma auto designada elite que se entende dona da razão e da verdade absoluta e que “ao arrepio” dos fundamentos de uma sociedade livre que alegadamente defendem querem impor um conjunto de procedimentos e princípios uniformizadores a todos numa procura desenfreada de objetivos a atingir, de causas por que lutar, de inimigos a eliminar.

A mais recente que me chamou a atenção foi o facto da Disney Portugal ter escolhido atores brancos para dar voz às personagens de animação do filme “Soul”. Este filme, para quem não sabe, tem como protagonista um músico afro-americano de “jazz”.

Ora, não me parece que a seleção de atores por parte da Disney para dar voz a personagens tenha como critério fundamental a cor da pele dos selecionados e, até que alguém me prove o contrário, o timbre das vozes não revela a cor da pele. Ou seja, quem vê o filme na versão portuguesa ou original vê sempre uma personagem afro-americana como protagonista, não vê um negro com voz de branco ou um branco com voz de negro, vê apenas um boneco animado negro que é músico de “jazz” e que fala português ou inglês ou outra língua qualquer.

Será que todos aqueles que se insurgiram, fariam o mesmo se um negro desse voz a uma personagem branca ou diriam que a cor da pele não é critério de seleção? Eu digo que a cor da pele não é critério de seleção e apenas condenarei esta seleção se for provada uma atitude deliberada da Disney Portugal em selecionar apenas atores brancos para as respetivas vozes.

Um branco só pode dar voz a um branco e um negro só pode dar voz a um negro? Claro que não! Há muito tempo que defendo um planeta, uma Humanidade. Somos apenas uma espécie e todos podemos fazer tudo, desde que o façamos bem.

Vamos a alguns exemplos:

  1. A ópera surgiu em Itália no século XVII, ou seja, é fruto da cultura europeia. Vamos vedar o canto lírico aos artistas negros? É que a ópera é originariamente uma “coisa de brancos”! É óbvio que num espetáculo de ópera o que conta são as qualidades cénicas e vocais do artista e não a cor da sua pele que inclusivamente pode ser disfarçada com maquilhagem, ou seja, um artista branco pode fazer uma personagem negra e um artista negro pode fazer uma personagem branca.
  2. A música “soul”, “blues” ou “rap”, por exemplo, é fruto da cultura afro-americana e resultado das influências culturais que os escravos africanos trouxeram para o “Novo Mundo”. Será que por isso não pode haver representantes brancos desta cultura? O que fazer às vozes incríveis da Amy Winehouse, da Adele ou até da nossa muito portuguesa Áurea? Será que não podem cantar e dar voz a músicas afro-americanas? Será que temos que proibir o Eminem de cantar “rap” ou o Rui Veloso de tocar “blues” porque não têm melanina suficiente na pele?

Em resumo, estamos perante mais uma tentativa de impor uma ordem com base na cor da pele e que mais tarde pode ser com base na religião, no género e por aí em diante. Repudio tudo isto, repudio a divisão da Humanidade com base em critérios anatómicos. Quero uma sociedade que tenha como critério de seleção a qualidade, o mérito, a capacidade de alguém nos fazer sonhar, rir ou chorar.

Aos que pensam que uma personagem negra tem que ter obrigatoriamente voz de um ator negro deixo-lhes um recado: lutem antes por uma sociedade mais justa que torne a cor da nossa pele invisível.

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